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Filósofo educador. "(...) a felicidade não é o somatório de todos os prazeres de que logramos desfrutar menos todas as dores que não conseguimos evitar e, sim, uma certa qualidade de vida".

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Terceira Margem do Rio - Guimarães Rosa


A DIMENSÃO POÉTICA DA EXISTÊNCIA HUMANA
(A Terceira Margem do Rio)

A recorrência à nossa subjetividade, ao nosso universo imaginário, faz da literatura a expressão legítima de arte da intimidade, e nos convida a pensar na figura impar do leitor, que renova o poema, conto, romance ou texto teatral em cada leitura.
A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo é mais que a literatura, leva-nos à dimensão política da existência humana. Poesia que de forma simples e suave revela que habitamos a Terra, não só prosaicamente – restritos à utilidade e à funcionalidade, mas e, sobretudo poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase (...).
Nesse sentido, o elemento vital da literatura ou da poesia revela seu poder no uso da linguagem que inevitavelmente nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível e do inteligível. Aqui, em especial, Guimarães Rosa em seu conto A terceira margem do rio; com muita propriedade conseguiu.
Em se tratando do conto ‘A Terceira Margem do Rio’, sua prosa na poesia traduz e desenha em suaves matizes o homem simples do sertão. Rosa, inquieto, se transfere para o lugar comum para em seguida o desconstruir e reinventar a palavra. Debruça seu labor num processo continuo de pesquisa de vários dialetos, ora sempre condensado, complexo, situando todo um conjunto experimental que lhe dá liberdade para recitar o irreal e que ao mesmo tempo suscita, promove e dá vozes ao outro, num verdadeiro exercício de alteridade.
Rosa, como se tivesse à margem da realidade, qual seja, a das estórias, busca num plano existencial figuras reais como os loucos, os matutos, o bêbado e crianças para compor seu mundo. O resultado é o sentido transcendente à experiência sensível e aprioristica que lhe reservam os mitos e os sonhos e delírios do sertão e da infância, o caráter intimamente psíquico e o humor ora presente da estória.
O menino, personagem de destaque na estória, traz em si o itinerário natural da experiência existencial humana, revela-se sobremaneira inexperiente, mas que se vê de forma inesperada confrontando com uma situação muito delicada e apesar da pouca idade sobressaltam da sua consciência sinapses que o orienta a decidir o sustento diário do pai com sobras de alimentos. O desfecho dessa circunstância como acusa o escritor Hadj Garm` Oren, “todo individuo, mesmo o mais restrito a mais banal das vidas, constitui, em si mesmo, um cosmo. (...). Cada um contém em si galáxias de sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e de amores, abismos de infelicidades, vastidões de fria indiferença, ardores de astro em chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias, relâmpagos de lucidez, tempestades furiosas (...)”.
O autor emoldura uma infância definida quando confronta com o desconhecido; fica de relevo o seu caráter imaginário e o emprego de uma linguagem freqüentemente metafórica e grávida de ressonâncias nos feitos e gestos do aprendiz.
O conto é por assim dizer menos objetivo e se processa numa perspectiva subjetiva, requer sempre e mais leituras, pois em momento algum deparamos com a peça chave que nos conduz ao segredo da obra. A sua essência se revela nas entrelinhas e se oculta em fragmentos que se disfarçam ao longo da estória.
Assim sendo, constantemente o autor provoca o leitor a cada momento, saltar num mergulho cada vez mais profundo, a decifrar enigmas ora presentes, estabelecendo um território na qual fazem parte o enunciatário e o enunciador, não apenas nos limites impostos no texto, sobretudo, nas suas possibilidades, no seu constante devir.
O conto com seu caráter misterioso se privilegia paradigmaticamente por seu caráter indecifrável, pouco revelado. A narrativa por si só evidencia em nós e a priori a certeza do que está encoberto e resta-nos tão somente a certeza e a humildade de percebê-lo.
Curiosamente, o conto nos enreda num processo dicotômico e confuso isto porque, ora se revela na clareira – esclarecido e iluminado mesmo que de silueta, ora produz sombras. É nessa encruzilhada que surge o risco iminente quando na tentativa por alguns que se julgam alto-suficiente para compreendê-lo possa deparar com sérios riscos e insucessos e por último e o mais importante, submeter à estória a banalidade das respostas objetivas, ignorando sua natureza sempre oculta.
É sugestivo ler o conto mantendo-se a margem, auscultando o ir i vir da canoa, que sobrenada o rio margeado, paradoxalmente por três margens. Para entrar no rio é preciso muito mais que o necessário, faz-se mister certa coragem e silêncio contemplativo, é preciso moderação e leveza espiritual que canalize o encontro imanente do leitor com a situação transcendente da obra.
Nesse sentido, é sugestivo tratar a terceira margem do rio de forma menos dogmática e quando possível, com certo ceticismo de desconfiança para aceitar o jogo das metáforas que o espírito científico rejeita com desprezo. A metáfora é um indicador e uma não-linearidade de local no texto ou no pensamento, é um indicador de abertura do texto ou do pensamento a diversas interpretações ou reinterpretações, para encontrar ressonância com as idéias pessoais de um leitor ou de um interlocutor.
Assim, a literatura assume um significado importante, pois trabalha com a complexidade, traz em si o desenho da condição humana na singularidade do individuo, a contaminação do real pelo imaginário como bem ilustrado no personagem Dom Quixote - de Cervantes ou o jogo das paixões humanas – Shakespeare.
Por ultimo, não poderia deixar de fazer aqui um drink da literatura com a filosofia. Não pretendo colocar esta em posição secundaria, alias o próprio Descartes já observava quando diz que “poderia surpreender que os pensamentos profundos sejam encontrados nos escritos dos poetas, e não nos dos filósofos. O motivo é que os poetas se servem do entusiasmo e explora a força da imagem. (Descartes, Cogitationes privatae)

Paz e bem!

Um comentário:

  1. É uma felicidade acompanhar o desenvolvimento expressivo de um grande amigo... principalmente por se tratar de vc. Um big beijo!

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