Criou-se no mundo moderno a máxima de que
o conhecimento é que impulsiona a economia. Em contrapartida, na outra ponta da
história, em especial na Grécia Antiga conhecimento e trabalho eram realidades
completamente distintas, porém determinantes na esfera social que vigia naquela
época. Para os gregos o ócio tinha uma conotação estritamente física: trabalho
era tudo aquilo que fazia suar, com exceção do esporte. Quem trabalhava, isto
é, suava a roupa, ou era um escravo ou era um cidadão de segunda classe. As
atividades não físicas como, por exemplo, a política, o estudo, a poesia, a
filosofia eram ociosas, ou seja, expressões mentais, dignas somente dos
cidadãos de primeira classe. 1
Sobre isso Aristóteles no século V a.Cdiz:
“o homem é um animal racional”, trocando em miúdos é dizer que o que define a
humanidade de alguém e sua dignidade é a capacidade de dedicar-se ao pensamento
e não às obras manuais, aos serviços pesados. Isso era considerado castigo e,
portanto, uma atividade longe de ser considerada nobre e por isso, reservada
para àqueles que desenvolvessem trabalhos com as mãos. Os gregos desprezavam o
trabalho e por isso o considerava uma obrigação dos escravos e degradação do
homem livre. A esse respeito vejamos mais uma das suas reflexões em A política: a natureza distinguiu os
corpos do escravo e do senhor, fazendo o primeiro forte para o trabalho físico
e o segundo esguio e, se bem que inútil para o trabalho físico, útil para a
vida política e para as artes, tanto na guerra quanto na paz. A utilidade dos
escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos: ajudam-nos com sua
força física em nossas necessidades cotidianas.
Pois bem, a idéia de trabalho como
castigo se confunde com a própria história da criação do homem e a encontramos em
Gênesis no mito adâmico que em virtude do pecado original, por haver
desobedecido à ordem do Criador, de não provar dos frutos da árvore do
conhecimento foi lhes concedido o trabalho como castigo pelo erro cometido. A
mulher recebeu uma condenação: “vais pagar com as dores do parto pelo teu erro”
e o homem outra condenação: “vais trabalhar”. Note que pedagogia parecida fora
adotada com a formação das sociedades clássicas
greco-romanas que se desenvolveram com base no sistema escravocrata. Portanto,
nas fases aqui mencionadas o trabalho
foi considerado coisa menor, indecente, imoral ou de gente que está sendo
punida. Etimologicamente falando, trabalho vem do latim tripalium, que era um
instrumento de tortura, isto é, três paus entrecruzados para serem colocados no
pescoço de alguém com o objetivo de produzir desconforto.
De todo modo se levarmos em consideração a
história seja ela a Antiga, a hebraica
cristã ou a medieval não vamos perceber modificações substanciais em relação ao
trabalho. Entretanto, voltemos mais uma vez aos gregos; são eles os
responsáveis por uma revolução ao nível do pensamento crítico e que por essas
razões no século V e IV a.C num verdadeiro exercício dialógico nortearam
profundas discussões políticas, éticas e filosóficas e que edificaram sob essas
estruturas um modelo controverso de Democracia e sobretudo, o direito de
“todos” os cidadãos poderem participar livremente do jogo político dessa época.
De tal sorte criou-se a Assembléia e o Tribunal onde os rumos da cidade eram
discutidos deixando de fora outros assuntos como os mitos e superstições e
outros valores como uma discussão de foro intimo restrito e inerente a
subjetividade dos indivíduos.
Credita-se a idéia de cidadania ao
antropocentrismo grego e, sobretudo na presença de espírito dos filósofos
sofistas que souberam dar volume nas questões sociais que se agitavam num lugar
até então dominado economicamente e politicamente pelas famílias aristocráticas;
em Atenas, por exemplo, era considerado cidadão homens, filhos de pais e mães
atenienses maiores de idade os demais, velhos, mulheres, crianças, escravos e
estrangeiros não eram considerados cidadãos. Estes últimos transitavam,
praticavam comércio e trabalhavam, mas não eram considerados cidadãos.
Da Antiguidade aos nossos dias, os germes
para o surgimento da cidadania e a concepção de trabalho como fonte de
identidade e auto-realização humana só foi possível a partir do Renascimento e
desde então o trabalho adquire um significado intrínseco, “as razões para
trabalhar estão no próprio trabalho e não fora dele ou em qualquer de suas
conseqüências” 2
Com o advento da modernidade – séc. XV e XVIII e o seu processo de secularização o conceito de
cidadania estará fortemente ligado à idéia de Direitos em especial a idéia de
direitos individuais e civis de tal modo distante da concepção ética grega.
Portanto, a cidadania vincula-se aos direitos políticos que proporcionará à
todo gênero humano pelo menos em tese a preservação da sua dignidade como um
dogma, o fortalecimento das liberdades que se estenderão do âmbito individual
às questões puramente econômica incentivadas
por um modelo de Estado laico e fortemente capitalista.
Virando a página, é verdade que não se
pode medir o grau de cidadania adquirido na modernidade como sendo o mais
elevado dos processos posto que muito do que fora idealizado não ter sido
efetivamente concretizado. Ainda se constata muito desrespeito em relação aos direitos
fundamentais do homem e sua relação com o trabalho continua sendo de exploração
por parte de famílias que conservam intactos costumes tradicionalmente
imbutidos e em escala global as grandes empresas mundiais que descumprem
tratados internacionais de combate à exploração de mão de obra. Em tempos
passados o iluminismo acenou com alguma esperança a possibilidade da
emancipação do gênero humano a partir de questões éticas ultra-avançadas para a
época. A promessa de liberdade, igualdade e fraternidade não passaram de mera
propaganda, uma espécie de marketing idealizado pela burguesia e grupos
conservadores. Com o trabalho homem continuou
infeliz, com mais liberdade passou a acreditar mais em si, feriu sua
espiritualidade, trocou sua fé num ser transcendente por religiões de
substituições ancoradas no pragmatismo cientifico.
É bem verdade que esse movimento
proporcionou entre outras coisas o alargamento do saber cientifico oferecendo
incontáveis benefícios para a humanidade, a ciência evoluiu oferecendo curas
fantásticas com resultados concretos, com o trabalho alguns puderam alimentar
suas esperanças, acumular bens e riqueza; mas em contrapartida, toda riqueza
produzida pelo mundo moderno não conseguiu diminuir a miséria de muitos povos,
a fome e a indigência de muitos de lá para cá em nada foi alterada e pelo que
parece figurará como matéria prima por longos tempos.
A idéia de trabalho como servidão precisa
ser substituída se possível pela idéia valor, ou algo próximo daquilo que os
gregos chamavam de poieses, o trabalho como fonte de prazer e de reconhecimento
daquele que produz com o objeto criado.
Quando a pessoa não encontra sentido
naquilo que faz, ela está criando espaços para um processo de alienação
terrível e isso tem sido a marca constante nos nossos tempos. Ao estabelecer
resultados, as empresas acabam criando uma relação muito desgastante dos
funcionários com a própria empresa e com
aquilo que fazem.
Trabalho não é castigo ou as vezes o é
como salienta o professor Mario Sergio Cortella em seu livro –Qual é a tua
obra? Como castigo porque a maior parte das pessoas diz: “quando eu parar de
trabalhar, eu vou fazer isso, isso e isso”. Pensado assim, o trabalho é tortura
e produz a sensação terrível de dependência e humilhação nas pessoas. É de um
modo geral, alienação.
Por: Israel Martins - filósofo educador.
Divinópolis, Março de 2014.
1
(Domênico De Masi. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. p. 14-15)
2
(ALBORNOZ, 1994, P.59).
Cortella,
Mario Sergio. Qual é a tua obra?.9.ed. Vozes, 2010.
Coleção
os pensadores. Aristóteles. Ed. Nova Cultural Ltda.
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